terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Perdeu a Comanda, e agora?

Ilegalidade da aplicação de multa por perda da Comanda




No dia a dia, em determinados estabelecimentos é utilizado o sistema de comandas que funciona como um tipo de controle para facilitar a cobrança dos produtos consumidos. Não há nenhuma restrição quanto ao seu uso. Entretanto, quando o consumidor perde a comanda é gerada uma desavença com o fornecedor, pois o único documento onde estava informando o valor a ser devidamente cobrado foi perdido. Assim, muitos estabelecimentos cobram multas exorbitantes pela perda da comanda de controle com a finalidade de não serem prejudicados. Todavia, essa prática, além de consistir um afronto aos direitos do consumidor, viola as garantias constitucionais da legalidade, da boa-fé objetiva, devido processo legal, contraditório e inafastabilidade.

O princípio da legalidade está disposto no artigo 5º, inciso II, da Carta Magna de 1988

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Tal princípio é uma conquista fundamental do Estado Democrático de Direito que visa, principalmente, combater os abusos arbitrários do Estado (eficácia vertical) e dos particulares (eficácia horizontal). Ela impõe que somente a lei pode criar deveres ou obrigações para os indivíduos, uma vez que, ela significa a expressão legítima do povo. Dessa maneira, o particular é livre para fazer tudo o que bem entender, desde que lei não proíba.

Nesses termos, não há lei que obrigue a pagar multa por perda da comanda, aliás, existem leis que não permitem o particular cobrar esse tipo de taxa. Assim, prevê o Código de Defesa do Consumidor (CDC):   

Art. 6º São direitos básicos do consumidor
[...]
IV - A proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
 [...] 
V - Exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
IV - Estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;


É uma obrigação do estabelecimento possuir um sistema de controle confiável, a fim de ter um controle sobre as vendas de cada consumidor. Essa responsabilidade não pode ser delegada ao cliente, que não é obrigado por lei a controlar o que ele consome. O ônus da prova, nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é do fornecedor. Trata-se de uma facilitação da defesa dos interesses dos consumidores que visa garantir a isonomia material em razão do desequilíbrio das partes na relação consumerista. O consumidor é sujeito hipossuficiente, posto que, em diversas situações, ele não possui os meios técnicos, jurídicos e econômicos para a realização na defesa de seus direitos. Por isso a razão do ônus da prova ser transferida ao fornecedor que possui mais condições de produzir provas. No caso da perda de comanda, é muito mais fácil o estabelecimento provar o quanto o consumidor consumiu, do que o contrário. Por isso que é recomendado que o fornecedor mantenha em seu estabelecimento diversos tipos de controle de consumo.

Dessa feita, a aplicação da multa é ilegal, já que aufere vantagem manifestamente excessiva ao fornecedor que transfere responsabilidade para o consumidor, de tal modo a ampliar a vulnerabilidade e ameaçar o equilíbrio contratual, pois o consumidor deve pagar apenas o valor daquilo que consumiu e não mais. Assim, não podem os estabelecimentos repassarem esse tipo de responsabilidade ao consumidor, pois agindo dessa forma, ferem, dentre outros princípios, o princípio da legalidade.

O princípio boa-fé objetiva

Diferentemente do princípio anterior, o princípio da boa-fé objetiva não se encontra explicitamente na Constituição Federal, mas ela está em plena conformidade com o princípio do Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CF), com os objetivos da República que tem por objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º,I,CF), dignidade da pessoa humana (artigo 1º,III,CF), solução pacífica dos conflitos (artigo 4º, VII, CF) e dentre outros princípios, que fundamenta esse princípio nas normas infraconstitucionais. No CDC, o princípio da boa-fé objetiva é previsto no artigo 4º, inciso III, que dispõe:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Ora, se a relação de consumo se funda na boa-fé, os estabelecimentos não podem partir do princípio que consumidor está agindo de má-fé, caso não tenha provas. O princípio da boa-fé é um princípio universalmente aceito, e diferentemente da má-fé, ela se presume.


Princípio do devido processo legal, contraditório e inafastabilidade
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

XXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 


Em tempos remotos, as sociedades resolviam seus litígios através da força. Com a evolução das nações, os homens abdicaram parte de seus direitos e decidiram que os litígios fossem resolvidos por um terceiro que interviria nos conflitos. Dessa maneira, surgiu a figura do Estado, que tem um dos seus poderes constituídos, a figura do juiz, que tem como função julgar da maneira mais correta possível. Isto posto, qualquer pretensão de direito deve ser levada a juízo, a fim de resolver o conflito, garantido a paz social. À vista disso, o Estabelecimento não pode privar alguém de seus bens, em razão de uma multa, sem primeiro ir ao judiciário. Obrigar o consumidor a dispor dos bens sem o contraditório, ampla defesa e o direito de jurisdição, ou até mesmo cercear a liberdade de um indivíduo, impedindo que este deixe o estabelecimento até pagar à taxa, é uma afronta aos princípios e garantias constitucionais mais importantes do Estado democrático de Direito, ferindo os incisos II, X, e LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Vejamos alguns artigos novamente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...)
 XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
 (...)
 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;


Caso o Estabelecimento insista com a cobrança indevida, com ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, o fornecedor pode estar cometendo crime, com infrações tipificadas no Código Penal e no Código de Defesa do Consumidor.

Art. 146 do Código Penal - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Art. 148 do Código Penal - Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: (Vide Lei nº 10.446, de 2002) Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:
 - se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente;
- se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
- se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
II - se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005)
- se o crime é praticado com fins libidinosos. (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005) § 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral: Pena - reclusão, de dois a oito anos. Redução a condição análoga à de escravo

Art. 158 do  Código Penal - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009) Extorsão mediante sequestro

Art. 147 do Código Penal: Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena de detenção, de um a seis meses, ou multa.

Art. 129 do Código Penal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena de detenção, de três meses a um ano.

Art. 71 do Código de Defesa do Consumidor - Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.


Portanto, caso ocorra concomitantemente a multa mais alguns dos crimes exemplificativos disposto à cima, o gerente ou o proprietário do estabelecimento além de pagar uma indenização proporcional ao dano poderá ser preso a depender do crime que possa a vir a cometer.  

Como resolver o problema na prática

Caso tenha perdida a comanda, imediatamente, solicite a presença do dono do estabelecimento ou do gerente e converse de maneira amigável sobre a situação. Com boa-fé, fale que está disposto a pagar o que consumiu, listando os produtos consumidos. Caso seja necessário, chame uma testemunha que afirme a suas alegações. Se a maneira amigável não der certo, e os responsáveis pelo o estabelecimento te causarem algum constrangimento ou te impeçam de sair, ligue para a polícia para que estes tomem as medidas necessárias. Caso queira evitar esse tipo de problema, pague a multa e exija a nota fiscal. Posteriormente reclame ao Procon, você terá o reembolso em dobro do pagamento realizado, além de pleitear indenização por danos morais caso opte por processar o estabelecimento. Nessa toada, dispõe o CDC:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
 VI - A efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

Também há Jurisprudência sobre o assunto
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSUMIDOR. MULTA REFERENTE À PERDA DE COMANDA DE CONSUMO. RETENÇÃO DE CELULAR COMO GARANTIA DE ADIMPLEMENTO. ART. 14, § 1º, DO CDC. ABUSO DE DIREITO. ART. 187, DO CÓDIGO CIVIL. CONDUTAS ABUSIVAS DOS PREPOSTOS DO DEMANDADO. FATO DO SERVIÇO CONFIGURADO. DEVER DE INDENIZAR PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS. - RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABUSO DE DIREITO”

Lembre-se, nunca desista dos seus direitos, pois “quem não luta por ele, não é digno de tê-lo”. (Rui Barbosa)



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