No dia a dia, em determinados
estabelecimentos é utilizado o sistema de comandas que funciona como um tipo
de controle para facilitar a cobrança dos produtos consumidos. Não há nenhuma
restrição quanto ao seu uso. Entretanto, quando o consumidor perde a comanda é
gerada uma desavença com o fornecedor, pois o único documento onde estava
informando o valor a ser devidamente cobrado foi perdido. Assim, muitos
estabelecimentos cobram multas exorbitantes pela perda da comanda de controle
com a finalidade de não serem prejudicados. Todavia, essa prática, além de
consistir um afronto aos direitos do consumidor, viola as garantias
constitucionais da legalidade, da boa-fé objetiva, devido processo legal, contraditório
e inafastabilidade.
O princípio da legalidade está
disposto no artigo 5º, inciso II, da Carta Magna de 1988
Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
II - ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Tal princípio
é uma conquista fundamental do Estado Democrático de Direito que visa,
principalmente, combater os abusos arbitrários do Estado (eficácia vertical) e
dos particulares (eficácia horizontal). Ela impõe que somente a lei pode criar
deveres ou obrigações para os indivíduos, uma vez que, ela significa a
expressão legítima do povo. Dessa maneira, o particular é livre para fazer tudo
o que bem entender, desde que lei não proíba.
Nesses
termos, não há lei que obrigue a pagar multa por perda da comanda, aliás,
existem leis que não permitem o particular cobrar esse tipo de taxa. Assim, prevê
o Código de Defesa do Consumidor (CDC):
Art. 6º São direitos básicos do
consumidor
[...]
IV - A
proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos
comerciais coercitivos ou desleais, bem
como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de
produtos e serviços;
Art. 39. É vedado ao
fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
[...]
V - Exigir do
consumidor vantagem manifestamente excessiva;
Art. 51.
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
IV -
Estabeleçam obrigações consideradas
iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada,
ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
É uma obrigação do
estabelecimento possuir um sistema de controle confiável, a fim de ter um
controle sobre as vendas de cada consumidor. Essa responsabilidade não pode ser
delegada ao cliente, que não é obrigado por lei a controlar o que ele consome.
O ônus da prova, nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do
Consumidor, é do fornecedor. Trata-se de uma facilitação da defesa dos interesses dos consumidores que visa garantir a
isonomia material em razão do desequilíbrio das partes na relação consumerista.
O consumidor é sujeito hipossuficiente, posto que, em diversas situações, ele
não possui os meios técnicos, jurídicos e econômicos para a realização na
defesa de seus direitos. Por isso a razão do ônus da prova ser transferida ao
fornecedor que possui mais condições de produzir provas. No caso da perda de comanda,
é muito mais fácil o estabelecimento provar o quanto o consumidor consumiu, do
que o contrário. Por isso que é recomendado que o fornecedor mantenha em seu
estabelecimento diversos tipos de controle de consumo.
Dessa feita, a aplicação da
multa é ilegal, já que aufere vantagem manifestamente excessiva ao fornecedor
que transfere responsabilidade para o consumidor, de tal modo a ampliar a
vulnerabilidade e ameaçar o equilíbrio contratual, pois o consumidor deve pagar
apenas o valor daquilo que consumiu e não mais. Assim, não podem os
estabelecimentos repassarem esse tipo de responsabilidade ao consumidor, pois
agindo dessa forma, ferem, dentre outros princípios, o princípio da legalidade.
O princípio boa-fé objetiva
Diferentemente do princípio anterior,
o princípio da boa-fé objetiva não se encontra explicitamente na Constituição
Federal, mas ela está em plena conformidade com o princípio do Estado
democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CF), com os objetivos da República
que tem por objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo
3º,I,CF), dignidade da pessoa humana (artigo 1º,III,CF), solução pacífica dos
conflitos (artigo 4º, VII, CF) e dentre outros princípios, que fundamenta esse
princípio nas normas infraconstitucionais. No CDC, o princípio da boa-fé
objetiva é previsto no artigo 4º, inciso III, que dispõe:
Art.
4º A Política Nacional das
Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de
desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos
quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores;
Ora, se a relação de consumo se
funda na boa-fé, os estabelecimentos não podem partir do princípio que
consumidor está agindo de má-fé, caso não tenha provas. O princípio da boa-fé é
um princípio universalmente aceito, e diferentemente da má-fé, ela se presume.
Princípio do devido processo
legal, contraditório e inafastabilidade
Art.
5º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal;
LV - aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
XXV - a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Em tempos remotos, as sociedades
resolviam seus litígios através da força. Com a evolução das nações, os homens
abdicaram parte de seus direitos e decidiram que os litígios fossem resolvidos
por um terceiro que interviria nos conflitos. Dessa maneira, surgiu a figura do
Estado, que tem um dos seus poderes constituídos, a figura do juiz, que tem
como função julgar da maneira mais correta possível. Isto posto, qualquer
pretensão de direito deve ser levada a juízo, a fim de resolver o conflito,
garantido a paz social. À vista disso, o Estabelecimento não pode privar alguém
de seus bens, em razão de uma multa, sem primeiro ir ao judiciário. Obrigar o
consumidor a dispor dos bens sem o contraditório, ampla defesa e o direito de
jurisdição, ou até mesmo cercear a liberdade de um indivíduo, impedindo que
este deixe o estabelecimento até pagar à taxa, é uma afronta aos princípios e
garantias constitucionais mais importantes do Estado democrático de Direito,
ferindo os incisos II, X, e LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Vejamos alguns artigos novamente:
Art.
5º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...)
XV
- é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer
pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
(...)
LIV
- ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal;
Caso o Estabelecimento insista com
a cobrança indevida, com ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, o
fornecedor pode estar cometendo crime, com infrações tipificadas no Código
Penal e no Código de Defesa do Consumidor.
Art. 146 do Código Penal - Constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido,
por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei
permite, ou a fazer o que ela não manda:
Art. 148 do Código Penal - Privar alguém de sua liberdade, mediante
sequestro ou cárcere privado: (Vide Lei nº 10.446, de 2002) Pena - reclusão, de
um a três anos.
§ 1º - A pena é de
reclusão, de dois a cinco anos:
I - se a vítima é ascendente, descendente ou
cônjuge do agente;
I - se a vítima é
ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos.
(Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
I - se a vítima é
ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60
(sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
II - se o crime é
praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; III - se a privação da liberdade dura mais de 15
(quinze) dias.
IV - se o crime é
praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº 11.106, de
2005)
V - se o crime é
praticado com fins libidinosos. (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005) § 2º - Se resulta à vítima, em razão de
maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral: Pena
- reclusão, de dois a oito anos. Redução a condição análoga à de escravo
Art. 158 do
Código Penal -
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de
obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que
se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
§
3º Se o crime é cometido mediante
a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a
obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze)
anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as
penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente. (Incluído pela Lei nº
11.923, de 2009) Extorsão mediante sequestro
Art. 147 do Código Penal: Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio
simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena de
detenção, de um a seis meses, ou multa.
Pena de detenção,
de três meses a um ano.
Art. 71 do Código de
Defesa do Consumidor - Utilizar,
na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou
moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro
procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho,
descanso ou lazer:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Portanto, caso ocorra concomitantemente a multa mais
alguns dos crimes exemplificativos disposto à cima, o gerente ou o proprietário
do estabelecimento além de pagar uma indenização proporcional ao dano poderá
ser preso a depender do crime que possa a vir a cometer.
Como resolver o problema na
prática
Caso tenha perdida
a comanda, imediatamente, solicite a presença do dono do estabelecimento ou do
gerente e converse de maneira amigável sobre a situação. Com boa-fé, fale que
está disposto a pagar o que consumiu, listando os produtos consumidos. Caso
seja necessário, chame uma testemunha que afirme a suas alegações. Se a maneira
amigável não der certo, e os responsáveis pelo o estabelecimento te causarem algum constrangimento ou te impeçam de sair, ligue para a polícia para que
estes tomem as medidas necessárias. Caso queira evitar esse tipo de problema,
pague a multa e exija a nota fiscal. Posteriormente reclame ao Procon, você
terá o reembolso em dobro do pagamento realizado, além de pleitear indenização
por danos morais caso opte por processar o estabelecimento. Nessa toada, dispõe
o CDC:
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não
será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento
ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
VI - A efetiva prevenção e reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
Também há Jurisprudência sobre o
assunto
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE
CIVIL. CONSUMIDOR. MULTA REFERENTE À PERDA DE COMANDA DE CONSUMO. RETENÇÃO DE
CELULAR COMO GARANTIA DE ADIMPLEMENTO. ART. 14, § 1º, DO CDC. ABUSO DE DIREITO. ART. 187, DO CÓDIGO CIVIL. CONDUTAS ABUSIVAS DOS PREPOSTOS DO DEMANDADO. FATO DO
SERVIÇO CONFIGURADO. DEVER DE INDENIZAR PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS. -
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABUSO DE DIREITO”
Lembre-se, nunca desista dos seus direitos, pois “quem
não luta por ele, não é digno de tê-lo”. (Rui Barbosa)
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